Retalhos da minha infância

Já há algum tempo que o tempo não tem tempo para me dar tempo, decidi portanto enganar o tempo e deixar de envelhecer, decidi agora aos 45 anos que a partir dos 25 não faço mais aniversário nenhum.

Aconselho que façam o mesmo, decidi isto ontem e hoje ao olhar-me no espelho vi-me igualzinho a ontem, não envelheci mesmo nada.

Pode parecer complicado, mas não é meus amigos, complicado complicado foi a minha infância, meus pais sofreram muito comigo, a começar quando eu tinha 4 anos e a minha avó se estatelou escada abaixo, ficando caída com a bacia fracturada, duas pernas que mais pareciam a mola de um isqueiro bic, ali bem juntinho a mim.

Eu estava a brincar, sentado numa manta ao fundo das escadas, brincava eu mentalmente com um peão e umas caricas, quando a minha avó decidiu aparecer de repente junto a mim. Tinha acabado de cair escadas abaixo e eu simplesmente nem pisquei.

Foi um cargo de trabalhos para os meus pais, eles pensaram inicialmente que eu estava em choque, mas depois chegaram á conclusão de que eu era mesmo assim: A minha avó acabadinha de morrer ali á minha frente e eu impávido e sereno.

Levaram-me então a um psicólogo, que após várias consultas em que nada me dizia, chegou á brilhante conclusão que eu não tinha sentimentos. Foram anos de felicidade para mim e de angustia para meus pais.

Infelizmente a cura veio quando menos se esperava, eu questionava-me em criança do que seria isso que os adultos tanto falavam, que seria isso dos sentimentos? Eu só sabia que dois dias por semana ía passear á conta dos sentimentos fossem eles quem fossem.

Morava em Camarate (arredores de Lisboa), e duas vezes por semana lá ía passear com a minha mãe até ao Lumiar de autocarro. Camioneta até á Charneca do Lumiar e depois o 1 da carris até ao lumiar.

Naquele primeiro andar do autocarro, no banco da frente com uma janela a toda a largura do veículo, sentia-me voar!

Bem, o que é bom acaba depressa, eu gostava dos tais dos sentimentos mesmo sem os conhecer - hoje não seria tão mau ver o sporting perder sempre - mas heis que um belo dia, estava sentado com meu pai no sofá da sala, enquanto ele via uma reportagem televisiva no noticiário sobre um tal de acidente no rio Paraná no Brasil, no estado do Paraná a uns 20 km de Paranavaí.

Parece que um barquito com seis brasileiros se virou e o que ainda hoje lembro é os crocodilos a trucidar os brasucas. Era braço arrancado daqui, perna a esvoaçar na boca de um crocodilo por ali e sangue por toda a parte.

Meu pai reparou de repente que me corria uma lágrima pela cara, lembro como se fosse hoje a cara que ele fez, e espantado perguntou-me: Filho! Afinal tu tens sentimentos, estás a chorar!

O meu primeiro pensamento foi que lá se íam acabar os passeios até ao Lumiar, e respondi que não sabia o que era isso.

Meu pai perguntou: Estás a chorar meu filho? Sim pai, respondi eu.
É por causa das imagens da televisão? Sim pai, respondi eu (ainda lembro hoje aquelas imagens ensanguentadas numa televisão a preto e branco).

Aleluia! Aleluia! Disse meu pai. (pensei que ele estava doido ou a ressacar...)

Filho, estás com penas das pessoas? É por isso que choras? Perguntou meu pai.
Não pai! Retorqui eu a soluçar de tanto chorar.

Então porque choras meu filho? Perguntou ele.
Vês aquele crocodilo canininho que está no canto da televisão pai? Perguntei eu.
Sim filho, vejo. Respondeu meu pai.

Ainda não comeu ninguééémmm!!!!

Foi desta forma simples, natural e espontânea que meu pai descobriu que eu afinal tinha sentimentos, as pessoas quando descobrem coisas ficam mais ricas, eu fiquei mais pobre, perdi as viagens ao Lumiar.

Hoje com quarenta e cinco anos tenho apenas vinte e cinco e ainda penso no que será isso dos sentimentos.

Faz-me confusão quando vejo pessoas a olhar os outros que estão mal e a querer ajudar para que fiquem melhor, mas quando os outros estão melhor vejo os que ajudaram a falar mal dos ajudados; vejo os que precisam de ajuda a ser muito humildes e simpáticos para com quem os ajuda, depois de não precisarem mais de ajuda, vejo-os a desprezar completamente e a falar mal dos que os ajudaram um dia.

Será que os que ajudam sentem-se superiores aos que precisam de ajuda e ajudam para "mostrar" isso?
Será que os que precisam de ajuda fingem-se simpáticos só para serem ajudados?
Deviam conhecer o meu psicólogo de infância... Faz-me muita confusão do que serão os sentimentos, não quero ter disso para não tratar ou falar mal de ninguém. Aliás, nem tinha onde os guardar.

Tenho saudades das visitas ao psicólogo; de vez em quando vinha outro psicólogo visitá-lo ao gabinete, sentia-me grande a ver os dois a conversar... "-Estás bom Miguel? -Sim, e tu? - Estou bem pá. - Que tem o míudo? (ficava contente por ver dois psicologos a falar de mim) - Não tem nada, mas preciso de o manter para fazer o meu ordenado, os pais são uns tótós...

Um dia estava a conversar com o meu pai, ele disse-me que eu era inteligente por ter passado para a quarta classe, eu quis devolver o elogio, então disse-lhe: Pai, tu és um tótó! Meu pai não achou muita piada ao elogio, levei uma galheta e fiquei a pensar durante anos que o meu pai devia pedir um parecer clínico, tinha virtudes que desconhecia; Não sabia que era tótó. Meu pai era assim mesmo, muito humilde mas pouco inteligente...

Pelos meus vinte anos pus-me a pensar na vida. Cheguei á conclusão que a um homem duas coisas podem acontecer: ou é civil ou é militar.

Se for civil ficará o caso arrumado, mas se for militar duas coisas lhe podem acontecer: Ou vai para o Iraque ou não vai.

Se não for para o Iraque está o caso arrumado, mas se for duas coisas lhe podem acontecer: Ou é ferido ou é morto.

Bem, se for morto estará o caso arrumado, mas se for ferido duas coisas lhe podem acontecer: Ou é internado ou não é.

Se não for internado está o caso arrumado, mas se for internado duas coisas lhe podem acontecer: Ou é tratado por um enfermeiro ou por uma enfermeira.

Imaginem que é tratado por um enfermeiro? Está o caso arrumado, mas se for tratado por uma enfermeira duas coisas lhe podem acontecer: Ou gostam um do outro ou não gostam.

Se não gostarem um do outro está o caso arrumado, se gostarem duas coisas lhes pode acontecer: Ou casam ou não casam.

Se não casarem está o caso arrumado, mas se eles casarem duas coisas lhes pode acontecer: Ou têm um filho ou uma filha.

Se tiverem uma filha está o caso arrumado, mas se tiverem um filho duas coisas lhe podem acontecer: Ou é civil ou é militar.

Dei comigo a pensar, que se os seis brasileiros comidos pelos crocodilos fossem militares ainda seriam vivos, se a minha avó fosse militar não estaria em casa e não caía da escada abaixo e se os psicólogos da minha infância fossem militares eu hoje não teria sentimentos.

Isto é o que fazemos quando não temos mais aniversários, dizemos Palermices...

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